terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

TANCREDO fala de GETÚLIO e JUSCELINO


in
"Tancredo  fala de Getúlio"
Valentina da Rocha LIMA  e  Plinio Abreu RAMOS.
São Paulo, L & PM Editores, 1968.
Programa de História Oral - Cpdoc-FGV


Trechos escolhidos do depoimento :



O pensamento político do RS, sobretudo na era republicana, foi muito marcado pelo  positivismo, como em nenhuma outra região do Brasil.
Os políticos do RS eram aqueles que tinham realmente o que hoje nós chamamos de uma concepção ideológica.

É interessante notar que em  JULIO DE CASTILHOS o RS encontrou uma liderança carismática, não apenas por seu vigor intelectual, pela força de suas convicções, mas por aquilo que ele conseguia conciliar perfeitamente bem : as suas convicções e o seu comportamento político.
CASTILHOS criou uma escola ;
criou uma equipe de homens públicos perfeitamente afinada com a sua doutrina e com os seus princípios.

Logo em seguida a CASTILHOS,
surgiu a personalidade singular de  BORGES DE MEDEIROS,
a personalidade consular de  PINHEIRO MACHADO,
por último temos  GETÚLIO VARGAS e,
de maneira mais diluída, mais afetada pelas influencias do mundo moderno, o próprio  JOÃO GOULART.

Essas 4 figuras decorrem por sucessão intelectual e ideológica de uma mesma matriz, que foi  JÚLIO DE CASTILHOS.



Em contraste com essa corrente, marcada pelo autoritarismo político e pela crença absoluta na força do poder, no poder como força criadora, formada por homens de uma probidade e honestidade apostolar, existiu simultaneamente no RS uma cordilheira de valores de uma escola liberal :
a escola de  SILVEIRA MARTINS,
a do  ASSIS BRASIL,
a do  RAUL PILLA,
que encontra mais recentemente no  PAULO BROSSARD sua expressão mais cintilante. (...)






VARGAS
era um vocacionado para o poder, e isso em razão da sua própria orientação filosófica.
VARGAS
é marcado pelo positivismo, sobretudo pelo castilhismo.
Ele tinha aquela polarização irresistível para o poder.
O poder como um instrumento de realizações em benefício do que chamaremos hoje de  'justiça social'.  Isto é, como instrumento de emancipação de segmentos sociais marginalizados e oprimidos. (...)
O poder como força super-humana ou de complementação das deficiências humanas para realizar grandes objetivos de ordem política e social.
Ele via no poder a única forma capaz de lhe permitir exteriorizar as suas concepções de ação política. (...)


Fazia política com requinte de estadista e de artista.
Há na obra de VARGAS não apenas uma grande concepção de um artista genial, mas o trabalho de um artista paciente, inteiramente voltado às suas concepções, dando sempre um retoque na sua obra-prima.

O estadista que não possuir paciência e humildade como possuía  VARGAS não será um homem público completo, nem um estadista completo.


GETÚLIO VARGAS  tinha algumas constâncias em seu pensamento.
Uma delas era a unidade nacional.
O espírito antifederalista de VARGAS  é muito curioso, porque ele via na federação muito mais um instrumento de desagregação do que de união.
Ele foi um centralizador por excelência, com o objetivo de manter o Brasil cada vez mais forte e mais unido.
Criou dentro do seu espírito unitário a concepção de construir uma nação, um grande povo, uma grande potência, e essas idéias o acompanharam em todos os momentos da sua existência. (...)



No segundo governo ele já encontrou muitos obstáculos na Constituição.
Porque a Constituição era descentralizadora.
O segundo governo foi marcado pelo desencadear de forças reacionárias pela política progressista de  VARGAS.
Ele era um grande coordenador dentro da concepção de um Estado que não tinha nenhuma semelhança com o Estado com o qual ele se havia identificado.
Encontrou instrumentos operacionais completamente díspares daqueles que estava habituado a manipular.
Daí o seu grande desajustamento com as instituições do segundo governo.
Até a sua morte, ele foi o mais democrata dos presidentes da República. (...)



O regime democrata é por sua natureza um regime de estímulos e de incentivos ao governante.
É um desafio ao cotidiano, muito mais excitante da obra governamental, do que o regime autoritário ou ditatorial.
No segundo governo, pela primeira vez num regime democrático,  VARGAS teve pela frente um projeto de desenvolvimento econômico a ser cumprido e realizado.
E isso coincidiu com as doutrinas da época, que já faziam parte do governo uma ação planejada :
começou com  DUTRA no  Plano SALTE e até o destruiu para fazer um novo programa de ação governamental, por considerá-lo mesquinho demais para as suas metas de governo. (...)



A prudência, a moderação, a tranquilidade de espírito, a maneira simples de encaminhar os problemas :  VARGAS  tinha muita coisa do político clássico mineiro.
Agora, na mentalidade, na ação, ele nunca deixou de ser gaúcho.
Na ação firme, impetuosa, segura.
Quando desencadeava um processo, ia até o fim.


A partir de 53, os discursos de Vargas eram de denúncia e de apelo.
Ele denunciava e pelas denúncias pedia o apoio das forças populares.
Ele sabia realmente que para algumas ações políticas não teria o apoio do Congresso, nem das forças militares.
Daí a razão porque os discursos dele terem sempre essa conclamação a um apoio direto do povo a ele.
Se ele tivesse feito concessões Às forças reacionárias, às forças conservadoras, teria governado até o fim.
Mas entre isso e as suas convicções, o que ele estava certo de que era o interesse do Brasil, ele fez a segunda opção. (...)


A crise foi provocada por uma conjuntura que a própria política alimentada e executada por  VARGAS  alimentou.

A política do salário mínimo foi realmente um fatos importante, porque somou todo o empresariado, todo o patronato nacional contra o governo.

Logo depois veio a política da remessa de lucros, que jogou contra o governo as multinacionais.
A nacional somou-se toda contra VARGAS.

Tem-se assim um somatório de ocorrências que geraram realmente um clima nacional que foi alimentado pela própria imprensa, sobretudo o rádio e a televisão.
E é importante que se observe isso : a televisão se implantou no Brasil no governo VARGAS.
Ninguém sabia que ela tinha a força de gerar e deflagrar emoções como ela mais tarde veio a nos revelar.
CARLOS LACERDA tinha vindo dos EUA, onde vira a força da televisão e foi o primeiro que chegou aqui com essa consciência política do que seria a televisão usada de maneira abusiva.
E aqui, todo programa de televisão era retransmitido via rádio. (...)




Em 5 de agosto a crise deixou de ser uma crise política e passou a ser militar.
Aí nós encontramos algumas  semelhanças com todos os projetos que a  CIA  adotou na América do Sul em face dos governos que ela desejava combater.
Você vê, no Chile foi o assassinato  de  SCHNEIDER  que antecedeu a queda de  ALLENDE.
Aqui pegaram o Major VAZ.
Quer dizer : era preciso ajuntar ao quadro o ingrediente emocional.
E o ingrediente emocional só se atinge com um cadáver. (...)



O problema do suicídio ...
Até a última hora, a impressão que  VARGAS  nos dava, a nós que conversávamos com ele, era do espírito de resistência.
É verdade que ele já estava com a carta pronta.
Mas quando hoje a gente lê a carta, percebe que ela era tanto para justificar uma resistência ou um gesto de bravura.
Toda a nossa conversa pouco antes da última reunião ministerial, era uma conversa de resistência.

É um fenômeno curioso.
Ele não foi para a reunião com o espírito do suicídio.
A idéia do suicídio se implantou nele depois da reunião.
Foi a decepção que os ministros militares lhe causaram.
Sobretudo isso, e o balanço que fez da reunião.
Ele já era um homem acuado.  (...)

Você sabe que a presidência em si mesmo isola.
Num governo em crise e caminhando para o fim do mandato, a solidão se agrava.




Dizem que a camisa ensanguentada de  LINCOLN fez sete presidentes nos Estados Unidos.
O suicídio  de VARGAS fez fatalmente
o  JUSCELINO,
o  JANGO e
o  próprio  JÂNIO.
O  JÂNIO  fez uma campanha getulista e explorou o  GETÚLIO como ninguém.
Nisso ele teve muita sensibilidade política.




Agora, que o governo do  JUSCELINO  é uma continuação do governo de  VARGAS, não tem a menor dúvida.
É verdade que  VARGAS  sempre esteve muito preocupado com o social do que com o desenvolvimento econômico.
Mas o desenvolvimentismo não teria sido possível se  VARGAS  não tivesse preparado as bases, os alicerces que o possibilitassem.
Por exemplo : a mudança da capital.
Se o presidente não tivesse fixado o local da capital, o  JUSCELINO  ia levar o governo todo só para escolher o lugar.
Quando  JUSCELINO chega e vê  Brasília fixada num decreto, e um decreto que não veio por acaso, veio como resultante de diversas comissões que trabalharam no estudo da localização, ele encontra meio caminho andado.



Foi possível a  JUSCELINO dar um grande impulso à eletrificação porque ele encontrou as bases preliminares.
Siderurgia :  porque já existia  Volta Redonda.
Como foi possível um desenvolvimento ordenado ?
Porque havia um  Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, que  VARGAS  implantou e foi realmente a grande espinha dorsal do processo desenvolvimentista do  JUSCELINO.


GETÚLIO fez as bases do desenvolvimento econômico, mas muito preocupado com o social.
Deu mais ênfase ao social, sem ter abandonado o desenvolvimento, tanto que implantou os alicerces.
JUSCELINO  veio muito mais preocupado com o desenvolvimento econômico do que com o social.


GETÚLIO  era um anti-inflacionista, tinha medo da inflação.
Já o JUSCELINO era um inflacionista convicto.
Participava de uma emissão com volúpia.
Precisava de uma emissão para construir uma barragem, para construir uma central elétrica ou uma grande estrada, aquilo para ele era um banquete.
Não obstante, deixou uma inflação de 25 %, que não é nada comparada com essa de hoje.
Mas com aquela inflação de 20 % ele realmente fez os  "50 Anos em 5". (...)



Eles eram totalmente diversos.
Essa preocupação com o social existia no  JUSCELINO, mas não era uma idéia tão obcessiva como em  VARGAS.
VARGAS  sofria fisicamente o sofrimento do trabalhador.
Ele levava a sua solidariedade ao assalariado a ponto de se identificar com ele. (...)


Acho que o  JUSCELINO  nunca foi um populista no sentido exato que nós aplicamos a palavra.
GETÚLIO  foi talvez o maior líder da renovação social no Brasil, mas não era um homem de fazer adulação ou concessões públicas aos trabalhadores.
Ele os tratava com muito respeito, mas os atendia nas suas reivindicações quando justas e no essencial.



O populismo no Brasil foi, realmente, uma deformação do getulismo, foi  ADEMAR DE BARROS, foi  PORFÍRIO DA PAZ,  o próprio  JÂNIO   - que deformaram o getulismo.
O populismo foi uma caricatura do getulismo.
O populismo era adulação, a submissão ao que havia de mais negativo nos sentimentos das massas.
Era servir-se da massa e não servir à massa.
É a manipulação da massa no que ela tem de negativo, é o aliciamento da massa a serviço de um agrupamento político ou de um chefe.  (...)




Hoje você verifica que, consciente ou inconscientemente, todos os governos realizam a política do GETÚLIO.
Os próprios governos revolucionários, no que eles têm de positivo, ainda são de inspiração getulista.
O desenvolvimento das telecomunicações, a ampliação dos projetos da  Petrobrás, a ampliação dos programas da Eletrobrás, tudo isso é parte de GETÚLIO.


Acho que o suicídio teve como consequência a eleição do  JUSCELINO.
Mas o suicídio também adiou 64.
Se não fosse o suicídio de  VARGAS, 54 já teria sido 64.
Você verifica :   as lideranças de 64 são as mesmas de 54, com os mesmos objetivos.
64 foi uma revolução de direita, uma revolução conservadora, nitidamente pró-americana, feita inclusive com a participação deles, americanos, que já tinham participado em 54.
Este é o aspecto mais importante do suicídio.
o  JÂNIO, em 61, foi na verdade um cripto-64 ; teve uma cobertura enorme de todos os elementos que fizeram 64.
Quando foi da sua renúncia, se não é o movimento do  BRIZOLA, eles já teriam nessa oportunidade implantado 64.
Foi a resistência pela legalidade democrática, comandada pelo  BRIZOLA que conseguiu empolgar a nação, criou um clima de opinião pública e mobilizou. (...)



O GETÚLIO  é singular dentro do quadro político brasileiro.
Não tem nenhum que se aproxime dele,
não só na estatura,
no valor,
na visão,
na clarividência,
como também no comportamento cívico,
na dignidade com que exerceu o poder.

Ele tinha uma noção de autoridade como em pouca gente eu vi.
Nunca vi ninguém chegar perto do Dr. GETÚLIO e se permitir uma certa intimidade.
Mesmo a  ALZIRA, que era a mais querida de todas as criaturas do seu coração, ela chegava, beijava, abraçava, mas se colocava imediatamente numa posição de respeito.
Ele infundia, inspirava, transmitia um sentimento de autoridade.

Nunca vi ninguém que tivesse tanto sentido de poder,
da dignidade do poder,
da autoridade do poder.
E não o fazia na base da imposição, não o fazia na base da arrogância, da prepotência.
Aquilo vinha naturalmente dele.

Ele é muitas vezes mal interpretado pelas suas contradições aparentes.
Essas contradições são meramente processos que ele adotava para atingir seus objetivos.
Ele é perfeitamente coerente do começo da sua vida pública até o último dia da sua existência na busca perseverante, tenaz e constante dos seus objetivos centrais.
Tinha muitas vezes que coonestar situações chocantes e contraditórias.



Ele teve a preocupação de fortalecer a integração nacional  -  um pensamento constante na sua obra.
Segundo, a preocupação em aprimorar as instituições políticas.
Terceiro, a preocupação com o desenvolvimento econômico.
Quarto, o grande impulso que ele deu à política social no Brasil, à emancipação social do trabalhador brasileiro. 

Esses objetivos, nortearam sua existência.
















 

DITADURA e TORTURA : "Tito, a paixão".


Adaptado de
FREI BETTO  -  "Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella". Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.



De modo exemplar Frei TITO DE ALENCAR LIMA encarnou todos os horrores do regime militar brasileiro.
Este é, para sempre, um cadáver insepulto.
Seu testemunho sobreviverá à noite que nos abate, aos tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste em ignorá-lo.
Permanecerá como símbolo das atrocidades infindáveis do poder ilimitado, prepotente, arbitrário.
Ficará, sobretudo, como exemplo a todos que resistem à opressão, lutam por justiça e liberdade (...).
 
Preso em novembro de 1969, Frei TITO foi vítima das maiores atrocidades, principalmente entre os dias 17 e 27 de fevereiro de 1970.
 
Libertado e banido do país em troca do embaixador suíço, que havia sido sequestrado no Rio de Janeiro pela  VPR - Vanguarda Popular Revolucionária, Frei TITO peregrinou pelo exílio no Chile, na Itália e na França, com seu psiquismo mutilado e perseguido pelos torturadores, até suicidar-se em agosto de 1974.
 
Seu relato de torturas, redigido na prisão, foi divulgado pela primeira vez no jornal  'PUBLIK' ,da Alemanha, recebeu prêmio especial de reportagem da revista norte-americana 'LOOK', em 1970, e correu o mundo traduzido em diversos idiomas.





Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes  - OBAN (Polícia do Exército) -  no dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas.
O capitão MAURÍCIO veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse :
 
"- Você agora vai conhecer a sucursal do inferno !"
 
 
Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram inicio : cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
 
Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no  DOPS.
Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela  2ª Auditoria de Guerra da 2ª Região Militar.
Fiquei sob a responsabilidade do juiz-auditor Dr. NELSON GUIMARÃES.  Soube posteriormente que esse juiz autorizara minha ida para a OBAN sob  'garantias de integridade física'.
 
 
Ao chegar à OBAN, fui conduzido à sala de interrogatórios.
A equipe do capitão MAURÍCIO passou a acarear-me com duas pessoas.
O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968.  Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época.
Apesar de declarar nada saber, insistiram para que eu  'confessasse'.
 
Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara.
Dependurado, , com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça.
 
 

 
 
Eram 6 os torturadores, comandados pelo capitão MAURÍCIO.
Davam-me  'telefones' (=tapas nos ouvidos) e berravam impropérios.
Isso durou cerca de uma hora.
Descansei 15 minutos ao ser retirado do pau-de-arara.
 
O interrogatório se reiniciou : as mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças.
Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas.
A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 22 horas.
 
Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida.
Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho.
Era uma cela de 3 X 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mal cheiro, sem colchão e cobertor.
Dormi de barriga vazia sob o cimento frio e sujo.
 
 
Na quarta-feira, fui acordado às 8 horas.
Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão HOMERO me esperava.
Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior.
A cada resposta negativa recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito.
 
Nesse ritmo prosseguiram  até o inicio da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas : arroz, feijão e um pedaço de carne.
 
Um preso na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor.
Fui dormir com a advertência de que, no dia seguinte, enfrentaria a  'equipe da pesada'.
 
 
Na quinta-feira, 3 policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior.
De estômago vazio fui para a sala de interrogatórios.
Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas :
 
" - Vai ter que falar senão só sai morto daqui"  - gritou.
 
Logo vi que isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza.
Sentaram-me na  cadeira-do-dragão, com chapas metálicas e fios :  descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos, na cabeça.
Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda.
A cada descarga eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor.
 
Da sessão de choques passaram-me ao pau-de-arara.
Mais choques, pauladas no peito e nas pernas, que cada vez mais se curvavam para aliviar a dor.
 
Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei.
Fui desamarrado e reanimado.
Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a descarga elétrica para 220 volts, a fim de que eu falasse  'antes de morrer'.
Não chegaram a fazê-lo.
Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias.
As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las.
Novas pauladas.
Era impossível saber qual parte do corpo doía mais ; tudo parecia massacrado.
Mesmo que quisesse não poderia responder às perguntas : o raciocínio não se ordenava mais.
Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.
 
 
Isso durou até às 10 horas, quando chegou o capitão ALBERNAZ :
 
" -  Nosso assunto agora é especial"  - disse o capitão, ligando os fios em meus membros.
 
" -  Quando venho para a OBAN, deixo o coração em casa.  Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede...  Guerra é guerra, ou se mata ou se morre.  Você deve conhecer  fulano e cicrano  ( citou os nomes de dois presos políticos torturados por ele ).  Darei a você o mesmo tratamento que dei a eles : choques o dia todo. "
 
Estavam 3 militares na sala.
Um deles gritou :
 
" - Quero nomes e aparelhos !"
 
Quando respondi  "não sei", recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas.
 
O capitão ALBERNAZ queria que eu dissesse onde estava Frei RATTON.
Como não soubesse, levei choques durante 40 minutos.
Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte  'metidos na subversão'.
 
Partiu para a ofensa moral :
 
" - Quais os padres que têm amantes ?"
" - Por que a Igreja não expulsou vocês ?"
" - Quem são os outros padres terroristas ?"
 
Disse que a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo.
 
Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me pontapés e pauladas nas costas.
 
Revestidos de paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca  'para receber a hóstia sagrada' :
introduziram dois fios elétricos.
Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito.
Gritavam difamações contra a Igreja, berravam que os padres são todos homossexuais porque não se casam.
 
Às 14 horas encerraram a sessão.
Carregado, voltei à cela, onde fiquei estirado no chão.
 
Às 18 horas serviram o jantar, mas não consegui comer.
Minha boca era uma ferida só.
 
 
Pouco depois levaram-me para uma  'explicação'.
Encontrei a mesma equipe do capitão ALBERNAZ.
Voltaram às mesmas perguntas.
Disseram que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era mesmo um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos.
O interrogatório se reiniciou para que eu  'confessasse' os assaltos  :  choques, pontapés nos órgãos genitais e no estômago, palmatória, ponta de cigarro aceso em meu corpo.
Durante 5 horas apanhei como um cachorro.
No fim, fizeram-me passar pelo  'corredor polonês'.
 
 
Quiseram deixar-me dependurado toda a noite no pau-de-arara.
Mas o capitão ALBERNAZ objetou :
 
" - Não é preciso. Vamos ficar com ele aqui mais dias.  Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis.  Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia."
 
 
 
Na cela, não conseguia dormir.
A dor crescia a cada momento.
Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo.
(...)
Era preciso por um fim àquilo.
Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado.
Só havia uma solução : matar-me.
 
Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia.
Comecei a amolar sua ponta no cimento.
O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse.
Havia sofrido mais do que eu  ( teve os testículos esmagados ) e não chegára ao desespero. (...)
 
Na sexta-feira, fui acordado por um policial.
Havia a meu lado um novo preso : um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada.
O policial advertiu-me :
 
" - O senhor tem hoje e amanhã para se decidir a falar. Senão a turma repete o mesmo pau.  Já perderam a paciência e estão dispostos a mata-lo aos pouquinhos".
 
 
Voltei aos meus pensamento da noite anterior.
Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes.
(...)
Ao meio dia tiraram-me para fazer a barba.
Disseram que eu iria para a penitenciária.
Raspei mal a barba ; voltei à cela.
Passou um soldado : pedi que me emprestasse a gilete para terminar a barba.
 
O português dormia.
Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo.
O corte fundo atingiu a artéria.
O jato de sangue manchou o chão da cela.
Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa.
 
 
 
Mais tarde recobrei os sentidos num leito do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas.
No mesmo dia, transferiram-me para um leito do Hospital Militar.
(...)
No corredor o capitão MAURÍCIO dizia desesperado aos médicos :
 
" - Doutor, este padre não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos."
 
No meu quarto, a OBAN deixou 6 soldados de guarda.
 
 
 
No sábado teve inicio a tortura psicológica :
 
" - A situação agora vai piorar para você que é um padre suicida e terrorista.  A Igreja vai expulsá-lo."   -  diziam eles.
 
Não deixavam que eu respondesse.
Falavam, o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias.
Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.
 
 
Na segunda noite, recebi a visita do juiz-auditor, acompanhado de um padre do convento e de um bispo-auxiliar de São Paulo.
Haviam sido avisados pelos presos políticos do Presídio Tiradentes.
Um médico do hospital examinou-me à frente deles, mostrando os hematomas e as cicatrizes, os pontos recebidos no Hospital das Clínicas, as marcas de tortura.
O juiz declarou quer aquilo era  'uma estupidez'  e que iria apurar responsabilidades.
Pedi a ele garantia s de vida e que eu não voltasse à OBAN, o que prometeu fazer.
 
 
 
De fato, fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OBAN que montavam guarda em meu quarto. (...)
Mas não se cumpriu a promessa do juiz.
Na sexta-feira, 27 de fevereiro de 1970, fui levado de manhã para a OBAN.
Fiquei na cela até o fim da tarde, cem comer.
Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar.
À noite, entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.
 
É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra.
Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas.
Muitos, como SCHAEL SCHREIBER e VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, morreram na sala de torturas.
Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos.
 
A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar.
Sua missão é defender e promover a dignidade humana.
Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre.
É hora de nossos bispos dizerem um  BASTA  às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.
A Igreja não pode omitir-se.  (...)
O silêncio é omissão.
 
 
 



 
 
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