terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

DITADURA e TORTURA : "Tito, a paixão".


Adaptado de
FREI BETTO  -  "Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella". Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.



De modo exemplar Frei TITO DE ALENCAR LIMA encarnou todos os horrores do regime militar brasileiro.
Este é, para sempre, um cadáver insepulto.
Seu testemunho sobreviverá à noite que nos abate, aos tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste em ignorá-lo.
Permanecerá como símbolo das atrocidades infindáveis do poder ilimitado, prepotente, arbitrário.
Ficará, sobretudo, como exemplo a todos que resistem à opressão, lutam por justiça e liberdade (...).
 
Preso em novembro de 1969, Frei TITO foi vítima das maiores atrocidades, principalmente entre os dias 17 e 27 de fevereiro de 1970.
 
Libertado e banido do país em troca do embaixador suíço, que havia sido sequestrado no Rio de Janeiro pela  VPR - Vanguarda Popular Revolucionária, Frei TITO peregrinou pelo exílio no Chile, na Itália e na França, com seu psiquismo mutilado e perseguido pelos torturadores, até suicidar-se em agosto de 1974.
 
Seu relato de torturas, redigido na prisão, foi divulgado pela primeira vez no jornal  'PUBLIK' ,da Alemanha, recebeu prêmio especial de reportagem da revista norte-americana 'LOOK', em 1970, e correu o mundo traduzido em diversos idiomas.





Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes  - OBAN (Polícia do Exército) -  no dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas.
O capitão MAURÍCIO veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse :
 
"- Você agora vai conhecer a sucursal do inferno !"
 
 
Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram inicio : cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
 
Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no  DOPS.
Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela  2ª Auditoria de Guerra da 2ª Região Militar.
Fiquei sob a responsabilidade do juiz-auditor Dr. NELSON GUIMARÃES.  Soube posteriormente que esse juiz autorizara minha ida para a OBAN sob  'garantias de integridade física'.
 
 
Ao chegar à OBAN, fui conduzido à sala de interrogatórios.
A equipe do capitão MAURÍCIO passou a acarear-me com duas pessoas.
O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968.  Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época.
Apesar de declarar nada saber, insistiram para que eu  'confessasse'.
 
Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara.
Dependurado, , com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça.
 
 

 
 
Eram 6 os torturadores, comandados pelo capitão MAURÍCIO.
Davam-me  'telefones' (=tapas nos ouvidos) e berravam impropérios.
Isso durou cerca de uma hora.
Descansei 15 minutos ao ser retirado do pau-de-arara.
 
O interrogatório se reiniciou : as mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças.
Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas.
A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 22 horas.
 
Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida.
Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho.
Era uma cela de 3 X 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mal cheiro, sem colchão e cobertor.
Dormi de barriga vazia sob o cimento frio e sujo.
 
 
Na quarta-feira, fui acordado às 8 horas.
Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão HOMERO me esperava.
Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior.
A cada resposta negativa recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito.
 
Nesse ritmo prosseguiram  até o inicio da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas : arroz, feijão e um pedaço de carne.
 
Um preso na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor.
Fui dormir com a advertência de que, no dia seguinte, enfrentaria a  'equipe da pesada'.
 
 
Na quinta-feira, 3 policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior.
De estômago vazio fui para a sala de interrogatórios.
Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas :
 
" - Vai ter que falar senão só sai morto daqui"  - gritou.
 
Logo vi que isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza.
Sentaram-me na  cadeira-do-dragão, com chapas metálicas e fios :  descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos, na cabeça.
Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda.
A cada descarga eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor.
 
Da sessão de choques passaram-me ao pau-de-arara.
Mais choques, pauladas no peito e nas pernas, que cada vez mais se curvavam para aliviar a dor.
 
Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei.
Fui desamarrado e reanimado.
Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a descarga elétrica para 220 volts, a fim de que eu falasse  'antes de morrer'.
Não chegaram a fazê-lo.
Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias.
As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las.
Novas pauladas.
Era impossível saber qual parte do corpo doía mais ; tudo parecia massacrado.
Mesmo que quisesse não poderia responder às perguntas : o raciocínio não se ordenava mais.
Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.
 
 
Isso durou até às 10 horas, quando chegou o capitão ALBERNAZ :
 
" -  Nosso assunto agora é especial"  - disse o capitão, ligando os fios em meus membros.
 
" -  Quando venho para a OBAN, deixo o coração em casa.  Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede...  Guerra é guerra, ou se mata ou se morre.  Você deve conhecer  fulano e cicrano  ( citou os nomes de dois presos políticos torturados por ele ).  Darei a você o mesmo tratamento que dei a eles : choques o dia todo. "
 
Estavam 3 militares na sala.
Um deles gritou :
 
" - Quero nomes e aparelhos !"
 
Quando respondi  "não sei", recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas.
 
O capitão ALBERNAZ queria que eu dissesse onde estava Frei RATTON.
Como não soubesse, levei choques durante 40 minutos.
Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte  'metidos na subversão'.
 
Partiu para a ofensa moral :
 
" - Quais os padres que têm amantes ?"
" - Por que a Igreja não expulsou vocês ?"
" - Quem são os outros padres terroristas ?"
 
Disse que a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo.
 
Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me pontapés e pauladas nas costas.
 
Revestidos de paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca  'para receber a hóstia sagrada' :
introduziram dois fios elétricos.
Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito.
Gritavam difamações contra a Igreja, berravam que os padres são todos homossexuais porque não se casam.
 
Às 14 horas encerraram a sessão.
Carregado, voltei à cela, onde fiquei estirado no chão.
 
Às 18 horas serviram o jantar, mas não consegui comer.
Minha boca era uma ferida só.
 
 
Pouco depois levaram-me para uma  'explicação'.
Encontrei a mesma equipe do capitão ALBERNAZ.
Voltaram às mesmas perguntas.
Disseram que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era mesmo um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos.
O interrogatório se reiniciou para que eu  'confessasse' os assaltos  :  choques, pontapés nos órgãos genitais e no estômago, palmatória, ponta de cigarro aceso em meu corpo.
Durante 5 horas apanhei como um cachorro.
No fim, fizeram-me passar pelo  'corredor polonês'.
 
 
Quiseram deixar-me dependurado toda a noite no pau-de-arara.
Mas o capitão ALBERNAZ objetou :
 
" - Não é preciso. Vamos ficar com ele aqui mais dias.  Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis.  Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia."
 
 
 
Na cela, não conseguia dormir.
A dor crescia a cada momento.
Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo.
(...)
Era preciso por um fim àquilo.
Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado.
Só havia uma solução : matar-me.
 
Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia.
Comecei a amolar sua ponta no cimento.
O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse.
Havia sofrido mais do que eu  ( teve os testículos esmagados ) e não chegára ao desespero. (...)
 
Na sexta-feira, fui acordado por um policial.
Havia a meu lado um novo preso : um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada.
O policial advertiu-me :
 
" - O senhor tem hoje e amanhã para se decidir a falar. Senão a turma repete o mesmo pau.  Já perderam a paciência e estão dispostos a mata-lo aos pouquinhos".
 
 
Voltei aos meus pensamento da noite anterior.
Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes.
(...)
Ao meio dia tiraram-me para fazer a barba.
Disseram que eu iria para a penitenciária.
Raspei mal a barba ; voltei à cela.
Passou um soldado : pedi que me emprestasse a gilete para terminar a barba.
 
O português dormia.
Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo.
O corte fundo atingiu a artéria.
O jato de sangue manchou o chão da cela.
Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa.
 
 
 
Mais tarde recobrei os sentidos num leito do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas.
No mesmo dia, transferiram-me para um leito do Hospital Militar.
(...)
No corredor o capitão MAURÍCIO dizia desesperado aos médicos :
 
" - Doutor, este padre não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos."
 
No meu quarto, a OBAN deixou 6 soldados de guarda.
 
 
 
No sábado teve inicio a tortura psicológica :
 
" - A situação agora vai piorar para você que é um padre suicida e terrorista.  A Igreja vai expulsá-lo."   -  diziam eles.
 
Não deixavam que eu respondesse.
Falavam, o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias.
Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.
 
 
Na segunda noite, recebi a visita do juiz-auditor, acompanhado de um padre do convento e de um bispo-auxiliar de São Paulo.
Haviam sido avisados pelos presos políticos do Presídio Tiradentes.
Um médico do hospital examinou-me à frente deles, mostrando os hematomas e as cicatrizes, os pontos recebidos no Hospital das Clínicas, as marcas de tortura.
O juiz declarou quer aquilo era  'uma estupidez'  e que iria apurar responsabilidades.
Pedi a ele garantia s de vida e que eu não voltasse à OBAN, o que prometeu fazer.
 
 
 
De fato, fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OBAN que montavam guarda em meu quarto. (...)
Mas não se cumpriu a promessa do juiz.
Na sexta-feira, 27 de fevereiro de 1970, fui levado de manhã para a OBAN.
Fiquei na cela até o fim da tarde, cem comer.
Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar.
À noite, entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.
 
É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra.
Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas.
Muitos, como SCHAEL SCHREIBER e VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, morreram na sala de torturas.
Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos.
 
A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar.
Sua missão é defender e promover a dignidade humana.
Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre.
É hora de nossos bispos dizerem um  BASTA  às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.
A Igreja não pode omitir-se.  (...)
O silêncio é omissão.
 
 
 



 
 
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